Agnaldo Rayol Agnaldo Rayol - O Ébrio

Nasci artista. Fui cantor.
Ainda pequeno levaram-me para uma escola de canto.
O meu nome, pouco a pouco, foi crescendo, crescendo, até chegar aos píncaros da glória.
Durante a minha trajetória artística tive vários amores. Todas elas juraram-me amor eterno, mas acabavam fugindo com outros, deixando-me a saudade e a dor.
Uma noite, quando eu cantava a Tosca, uma jovem da primeira fila atirou-me uma flor.
Essa jovem veio a ser mais tarde a minha legítima esposa. Um dia, quando eu cantava A Força do Destino, ela fugiu com outro, deixando-me uma carta, e na carta um adeus.
Não pude mais cantar. Mais tarde, lembrei-me que contudo, ela, me havia deixado um pedacinho de seu eu: a minha filha.
Uma pequena boneca de carne que eu tinha dever de educar.
Voltei novamente a cantar mas só por amor a minha filha. E eduquei-a, fez-se moça, bonita... E uma noite, quando eu cantava ainda mais uma vez A Força do Destino, Deus levou a minha filha para nunca mais voltar.
Daí pra cá eu fui caindo, caindo, passando dos teatros de alta categoria para os de mais baixa. Até que acabei por levar uma vaia cantando em pleno picadeiro de um circo. Nunca mais fui nada. Nada não! Hoje, porque bebo a fim de esquecer a minha desventura, chamam-me ébrio. Ébrio...

Tornei-me um ébrio e na bebida busco esquecer
Aquela ingrata que eu amava e que me abandonou
Apedrejado pelas ruas vivo a sofrer
Não tenho lar e nem parentes, tudo terminou
Só nas tabernas é que encontro meu abrigo
cada colega de infortúnio é um grande amigo
Que embora tenham como eu seus sofrimentos
Me aconselham e aliviam os meus tormentos
Já fui feliz e recebido com nobreza até
nadava em ouro e tinha alcova de cetim
E a cada passo um grande amigo que depunha fé
E nos parentes confiava, sim!
E hoje ao ver-me na miséria tudo vejo então
o falso lar que amava e que a chorar deixei
Cada parente, cada amigo, era um ladrão
Me abandonaram e roubaram o que amei
Falsos amigos, eu vos peço, imploro a chorar
Quando eu morrer, à minha campa nenhuma inscrição
Deixai que os vermes pouco a pouco venham terminar
este ébrio triste esse triste coração
Quero somente que na campa em que eu repousar
os ébrios loucos como eu venham depositar
Os seus segredos ao meu derradeiro abrigo
e suas lágrimas de dor ao peito amigo